Powered By Blogger

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Cena Urbana (cronica)

Cena Urbana


Sexta feira, pleno verão, faz um calor terrível, 35 graus Celsius,11h00 da manhã.
Termino o cafezinho com dois amigos dos velhos tempos de IBM...
Com o fim do  cafezinho resolvemos interromper o bom papo  e cada um de nós se apressou de volta à seus problemas.
Saí do shopping  onde estávamos que fica no centro da cidade, andei tres quarteirões e entrei  vagarosamente pela praça. “Praça dos pombos” ; como alguns às vezes se referem à ela...
Sempre que passo por ali, mesmo que esteja premido pela pressa, sempre observo a praça, porque algumas recordações de quando cheguei à cidade me vêm à mente, dificuldades financeiras, (não que não as tenha hoje), desemprego, fome...
Hoje, no entanto, assim que entrei pelo calçadão, algo diferente me chamou a atenção...
Estavam lá, os mesmos desocupados de sempre, os mesmos pombos sendo alimentados por crianças deslumbradas, sob os olhares orgulhosos de pais atentos e mira certeira e bem ajustada de fotógrafos quase “lambe-lambe-modernos” querendo tirar proveito da ocasião que dificilmente se repetirá.
Fico imaginando que, alguns desses pais , como eu, talvez esteja aproveitando ali a rara oportunidade de desfrutar da delícia que é estar com o filho ou filha que ficou distante... monstruosamente distante, depois que o casamento, que era “pra que até que a morte os separe...”,  estupidamente, terminou... acabando, não só com o relacionamento que se queria encerrar, mas, tambem , com os outros em volta dos quais com certeza nenhum de nós quer abrir mão por nada!
Paro... o menino continua a correr atrás do pombo que teima em perseguir o grão de milho atirado mas sem se deixar capturar, como se brincassem de “pega-pega”. O avô chega e se senta no banco onde está a mãe que esbraveja gratuitamente pedindo para que pare com a estripulia. Fico pensando: ela o levou ali pra que?
Bem ao lado, ignorando tudo ao redor, está o que de especial e diferente me chamou a atenção hoje...
Um homem, que imagino, apesar do inchaço de seus pés que estão quase estourando as tiras da havaiana desgastada, da barba de muitos dias, já não dá pra saber quantos  e do cabelo comprido e seboso, não deve passar dos 40 , está assentado e tem no seu colo um bem preciosíssimo, talvez a única coisa de valor que lhe tenha acompanhado por esta estrada de extremo infortúnio... uma mulher.
Eu fico ali por vários e longos minutos tentando encontrar naquela cena uma razão, uma lição, sei lá o que !
O coração se aperta dentro do meu peito, repassam pela minha cabeça rapidamente lembranças de amôres vividos que não suportaram pequenos problemas e se foram assim como vieram... eu o vejo com uma das mãos segurando a cabeça dela, cabelos curtos e tão sebosos (talvez mais) quanto os dele, se apoiando sobre suas pernas e com a outra mão ele faz afagos incessantes e ela dorme... talvez até entorpecida por algum copo de cachaça.
Não vejo seu rosto pois está de costas para o passeio, e ele... incansavelmente passa a mão pela sua cabeça ignorando tudo e todos à sua volta. Tenho vontade de chegar mais perto para apreciar melhor a cena mas penso que é melhor não atrapalhar e fico ali como que extasiado...
Dá pra perceber que os pés dela tambem estão inchados,  os calcanhares rachados, as unhas por cortar. Talvez por baixo dessa miséria toda ela seja bonita, penso... isso parece que não importa muito ao homem que afaga e afaga...
De repente ele se curva ... e quando qualquer um de nós pensaria não haver mais ternura para se demonstrar ... ele puxa a cabeça dela de encontro à sua boca e lhe dá um longo,terno e demorado beijo no rosto...
Fiquei comovido e uma lagrima escapou, evidenciando isso com mais clareza...
Aquele homem da praça, imundo, fétido, com certeza faminto, talvez com a dignidade atingida profundamente, totalmente abandonado pela sorte... tinha ali entre suas mãos o bem mais precioso para um ser humano.
Um bem que muitos perseguem a vida inteira e não encontram, alguns encontram e perdem estúpidamente... aquele homem tinha no seu colo o verdadeiro dom de Deus, “o amor”...
Retomo o passo, atravesso a praça e mergulho na tarde quente desta sexta feira trazendo comigo a lembrança daquela cena  tão rara nos nossos dias...

Campinas, 1991